Folha de São Paulo, quinta-feira, 18 de outubro de
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE
TENDÊNCIAS/DEBATES
Compra de votos e governabilidade
Não é defender os mensaleiros,
mas não deveríamos também censurar os governantes que compram a
"governabilidade" distribuindo cargos e emendas?
A afirmativa de que os fins
justificam os meios sempre foi vista como antiética. Todavia, em nosso
cotidiano, vemos exemplos claros dessa prática, que não censuramos.
Quando Fernando Henrique Cardoso
foi pela primeira vez eleito presidente, José Serra, então seu fiel escudeiro,
perguntado por um repórter se estaria preocupado com a
"governabilidade", respondeu que não, pois dispunha-se de 20 mil
cargos.
Entenda-se que estes cargos
seriam distribuídos para obter governabilidade, o que significa apoio no
Congresso, em votações que fossem de interesse do Executivo. Ou seja,
governabilidade por distribuição de cargos não seria apenas um eufemismo para
compra de votos?
Um desses cargos sem concurso corresponde
a um salário entre R$ 5.000 e R$ 15.000 por mês, digamos uma média de R$ 130
mil por ano. Os 20 mil cargos durante um mandato de quatro anos somam R$ 10
bilhões. Frente a tal valor, o total do mensalão é uma ninharia.
Ora, o professor José Serra estaria
dizendo que dispunha dessa imensa quantia de dinheiro público para comprar
governabilidade -ou seja, apoio em votações de interesse do governo. Será que
isso é diferente, em sua essência, da compra de votos como interpretada pela
STF no caso do assim chamado "mensalão"?
Uma outra forma generalizada de
"compra de governabilidade" é através das chamadas emendas
parlamentares. Consideremos para ilustração o seguinte exemplo: ainda no
primeiro mandato de Fernando Henrique, foi formada uma comissão mista do
Congresso para aprovar o contrato que suportaria a implantação do
"Sivam" (Sistema de Vigilância da Amazônia).
Fui escalado para representar a
oposição ao projeto. O contrato com o Eximbank que forneceria e forneceu os
recursos atribuía ao Brasil apenas a responsabilidade das obras civis,
conferindo às indústrias dos Estados Unidos e da Europa a confecção de todos os
equipamentos, embora já existisse uma indústria nascente brasileira no setor.
A intenção de sonegação de
transferência de tecnologia para o Brasil ficava óbvia em um artigo do contrato
que dizia que se qualquer equipamento não pudesse ser produzido nos Estados
Unidos, ele poderia ser encomendado em qualquer outro país, exceto o Brasil.
Essa obscenidade teria sido
suficiente para que qualquer parlamentar com um mínimo de patriotismo, para não
dizer dignidade, repudiasse a proposta americana.
Pois bem, o projeto foi aprovado
sem objeções. Na semana seguinte, a Folha publicou a relação de emendas
parlamentares liberadas imediatamente após a votação e os respectivos nomes dos
congressistas que tinham votado favoravelmente.
O único critério para as ditas
liberações foi, inquestionavelmente, o voto favorável, ou seja, votos foram
comprados com dinheiro público.
Esses e outros múltiplos
dispositivos, igualmente inquinados, são generalizadamente adotados igualmente
por impolutos e ímpios políticos no Brasil. Apenas não são tão explícitos como
aquele do dito mensalão, pois sabem manter as aparências. À mulher de César
basta parecer honesta.
Que a simplista exposição aqui
apresentada não seja entendida como escusa aos atos dos assim chamados
mensaleiros, mas antes como alerta para a sociedade a respeito das múltiplas e
corruptas formas, já banalizadas, de compra de voto que frequentam o Congresso.
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE,
81, físico, é professor emérito da Unicamp, pesquisador emérito do CNPq e
membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia e do Conselho Editorial da
Folha