terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Especialistas discutem qualidade da cerveja nacional

Uma discussão de gente grande. Aconteceu na “Tendências e Debates” da Folha de S. Paulo, praticamente na passagem de 2009 para 2010. Será que a cerveja que tanto gostamos é boa ou não?

A cerveja: bebendo gato por lebre

É inexplicável que sejam tão omissas as autoridades brasileiras quando se trata da bebida nacional mais popular e de maior consumo por Rogério Cezar de Cerqueira Leite (*), para a Folha, em 18 de janeiro de 2009.
OBrasil é o quarto maior produtor de cerveja, com pouco mais de 10 bilhões de litros por ano. A China é o maior de todos, com 35 bilhões, e os EUA são o segundo, com 24 bilhões. A Alemanha vem em terceiro, com uma produção apenas 5% maior que a brasileira.
Segundo norma autorregulatória da indústria cervejeira alemã, a cerveja é composta única e exclusivamente por apenas três elementos, cevada, lúpulo e água, tendo como interveniente um fermento. Tradicionalmente, o termo malte designa única e precisamente a cevada germinada.
O malte pode substituir a cevada total ou parcialmente. A malandragem começa aqui. Com frequência, lê-se em rótulos de cervejas a expressão "cereais maltados" ou simplesmente "malte", dissimulando assim a natureza do ingrediente principal na composição da bebida.
Com a aplicação desse termo a qualquer cereal germinado, a indústria cervejeira pode optar por cereais mais baratos, ocultando essa opção.
O poder da indústria cervejeira no Brasil (lobby, tráfico de influência etc.) deve ser imenso. Basta lembrar que convenceram as autoridades (in)competentes nacionais de que não estavam violentando normas que regulam a formação de monopólios ao agregar Brahma e Antártica -o que constituiria então cerca de 70% do consumo nacional- com o argumento de que só assim poderiam concorrer no mercado globalizado. Mas depois foram gostosamente absorvidas por uma multinacional do ramo, certamente uma forma sutil de realizar a concorrência prometida. E não foi tomada nenhuma providência.
Aliás, sempre que aparecia no cenário uma empresa nascente que, pela qualidade, pudesse despertar no brasileiro uma eventual discriminação quanto ao sabor, era ela acuada por todos os meios possíveis e finalmente absorvida, e sua produção, reduzida ao mesmo nível da mediocridade dos produtos das duas gigantes.
Aparentemente, o receio era o de que a população cervejeira, ao ser exposta a diferentes e mais sofisticados exemplos, desenvolvesse algum bom gosto e, consequentemente, passasse a demandar cerveja de qualidade.
A cerveja brasileira (com pequenas e honrosas exceções) é como pão de forma: mata a sede, mas não satisfaz o paladar exigente.
Para esclarecer a questão da má qualidade da cerveja brasileira, vamos fazer alguns cálculos.
A produção nacional de cevada tem ficado nos últimos anos entre 200 mil e 250 mil toneladas, das quais entre 60% e 80% são aproveitados pela indústria cervejeira. Essa produção agrícola tem sido suplementada por importação de quantidade equivalente. Em média, portanto, cerca de 400 mil toneladas de cevada são consumidas na indústria da cerveja no Brasil, presumindo-se que quase toda a importação tenha essa finalidade.
O índice de conversão entre a cevada e o álcool é, em média, de 220 litros por tonelada. Como as cervejas brasileiras têm um teor de álcool de 5%, podemos concluir que seria necessário que houvesse pelo menos seis vezes a quantidade de cevada hoje disponível para a indústria nacional da cerveja. Portanto, a menos que um fenômeno semelhante àquele do "milagre da multiplicação dos pães" esteja ocorrendo, o álcool proveniente da cevada na cerveja brasileira representa cerca de 15% do total.
Há pouco mais de duas décadas foi publicado um relatório de uma tradicional instituição científica do Estado de São Paulo segundo o qual análises de cervejas brasileiras mostravam que um pouco menos que 50% do conteúdo da bebida era proveniente de milho (obviamente sem considerar a água contida).
Como o índice de conversão de grão em álcool para o milho é 80% maior que para a cevada, podemos considerar que a conclusão do relatório em questão atua como álibi, pois satisfaria normas vigentes. Isso também explica a preferência dos produtores de cerveja pelo milho, pois os preços da tonelada dos dois cereais são aproximadamente os mesmos, apesar de consideráveis oscilações.
Esses números permitem, todavia, concluir que o milho (e outros eventuais cereais que não a cevada) constitui, em peso, quase três quartos da matéria-prima da cerveja brasileira, revelando sua vocação para homogeneização e crescente vulgaridade.
Outro determinante da baixa qualidade da cerveja brasileira é a adição de aditivos químicos para a conservação. O mal não está só nessa condição, mas na sua necessidade. O lúpulo em cervejas de qualidade, sejam "lagers", sejam "ales", é o componente responsável pela conservação -além, obviamente, de suas qualidades de paladar.
Depreende-se daí que os concentrados de lúpulo usados na cerveja brasileira são de baixa qualidade. O que é inexplicável e de lamentar, entretanto, é que as autoridades brasileiras, tão zelosas para com alimentos corriqueiros, sejam tão omissas quando se trata da bebida nacional mais popular e de maior consumo e permitam que o cidadão brasileiro beba gato por lebre.

(*) ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE , 78, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), presidente do Conselho de Administração da ABTLuS (Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron) e membro do Conselho Editorial da Folha .
A cerveja e o orgulho de quem faz o melhor

A indústria brasileira de cerveja zela pela qualidade de seu produto. Ela sabe que seu consumidor é exigente e tem muito bom gosto.
por Sílvio Luiz Reichert (*), para a Folha, em 30 de dezembro de 2009
Em artigo publicado no dia 18 ("A cerveja: bebendo gato por lebre"), o físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite atacou duramente a indústria brasileira de cerveja, lançando mão de argumentos ora incorretos, ora infundados, mas sempre injustos. Argumentos que precisam ser refutados em nome de um setor que goza da confiança e da preferência de milhões de consumidores, que foram inaceitavelmente desinformados.
Para deixar claro que não aprecia o produto que é feito no Brasil e consumido e aprovado pelos brasileiros, o autor se vale de números errados e premissas levianas que não levam à conclusão por ele desejada, a de que a cerveja brasileira é ruim porque elaborada de maneira enganosa, na base da "malandragem", utilizando-se de produtos de baixa qualidade, ludibriando o consumidor e afastando-o do que o autor considera "bom gosto".
A indústria nacional de cerveja possui tradição de mais de cem anos e tem orgulho de produzir bebidas de altíssima qualidade, assumidamente mais leves, menos encorpadas, mais refrescantes, mais digestivas do que similares europeias e condizente com o clima brasileiro e com o que deseja o consumidor.
Ao contrário do que dá a entender o artigo, as grandes cervejarias obedecem à legislação brasileira, que determina que a porcentagem de malte (cevada submetida a processo controlado de germinação) contido no extrato que dá origem à bebida não pode ser menor do que 55%.
Os demais cereais que o mestre cervejeiro usa nas fórmulas, dentro da lei e das boas práticas da profissão e da produção, são não maltados, ao contrário do que diz o autor, e empregados para alcançar as características que se pretende: mais malte é igual a cerveja mais encorpada e mais pesada; menos malte (respeitando o mínimo de 55%) é igual a cerveja leve, refrescante, suave.
A segunda e incompreensível incorreção do físico vem no bojo de conta que ele faz para tentar convencer que a cerveja fabricada no Brasil utiliza outros produtos que não a cevada para ludibriar o consumidor. Prova: o Brasil não produz nem importa cevada suficiente para dar conta da demanda de malte dos fabricantes. De fato, não mesmo. Tanto que a maior parte do malte utilizado pelas grandes indústrias, algo em torno de 65% ou mais, é importado. Mas isso não entrou na conta do autor.
Da mesma forma, ele desconsidera que mais malte ou menos malte na cerveja é antes de tudo uma opção do mestre cervejeiro na formulação de seu produto. Em algumas marcas de grande penetração no nosso mercado, esse percentual chega a 100%. Trata-se de opção técnica, cujo único objetivo é justamente produzir um produto de acordo com a preferência do consumidor, nunca enganá-lo.
Claro que há gosto para tudo, tanto que fabricantes nacionais mantêm em seu portfólio inúmeras marcas importadas, belgas, alemãs e outras.
Mas essas marcas ocupam uma faixa inexpressiva do mercado, por um motivo muito simples: a imensa maioria prefere a cerveja brasileira.
Ainda para tentar convencer o leitor de que a "má qualidade" origina-se na opção por produtos ruins, o autor comete mais um erro: afirma que o índice de conversão do grão de milho em álcool é maior que o da cevada. Trata-se exatamente do oposto: a cevada tem rendimento de 67% na composição do extrato originário da cerveja, enquanto o milho atinge apenas 56% de rendimento.
Há ainda a contestar um argumento leviano e duplamente incorreto. O autor diz que a tal "má qualidade" seria, também, decorrência da utilização de conservantes químicos. As cervejarias brasileiras de primeira linha não usam conservante por dois motivos: primeiro, porque é ilegal, trata-se de prática vetada pela legislação; segundo, porque totalmente desnecessário, já que a conservação da cerveja de boa qualidade é garantida pelo seu próprio processo de fabricação.
Por fim, o autor mira suas baterias contra o lúpulo utilizado no Brasil, também este de "baixa qualidade".
Talvez ele não saiba que o produto é importado da Europa (onde é utilizado inclusive no fabrico das cervejas alemãs, por ele citadas) e dos EUA, que mantêm rígidos padrões de qualidade para o produto.
Esse nível de desinformação se choca frontalmente com o patamar de excelência em que se encontra a indústria brasileira de cerveja. Trata-se de um setor que investe permanentemente em pesquisa e inovação, dispõe das mais modernas tecnologias e zela pela qualidade de seu produto porque tem plena consciência de que, diferentemente do que pensa o autor do artigo, seu consumidor é exigente e tem muito bom gosto.

(*) SILVIO LUIZ REICHERT, químico, mestre cervejeiro pela Doemens Fachakademie, da Alemanha, é vice-presidente de Inovação e Desenvolvimento Tecnológico da Anheuser-Busch Inbev.

Cerveja: o orgulho de quem fatura mais
Por que as cervejas belas, inglesas e alemãs que usam lúpulo de boa qualidade não precisam de antioxidantes e estabilizantes?
por Rogério Cezar de Cerqueira Leite, para a Folha, em 14 de janeiro de 2010
Em texto anônimo, assinado por um certo Silvio Luiz Reichert e intitulado "A cerveja e o orgulho de quem faz o melhor" (30/12), a multinacional de capital estrangeiro Anheuser-Busch Inbev, proprietária da AmBev, responde ao meu artigo "A cerveja: bebendo gato por lebre" (18/12/09).
Entretanto, não responde à principal acusação, a saber, o engodo de que foi vítima o governo e o povo brasileiro pela fusão Antártica-Brahma, quebrando princípios e a legislação contra a formação de cartéis com a desculpa de que, fundidas, poderiam enfrentar a competição com multinacionais -para ser o cartel, em seguida, absorvido por empresa estrangeira. Também não foi explicada a prática perversa de coação a cervejarias nascentes para depois absorvê-las e aniquilá-las ou banalizar seus produtos. Pois bem, a mentira tem muitas faces, como se vê em seguida.
1) Maranhão, mentira bem urdida (padre Vieira, "Quinto Domingo da Quaresma"). Diz o echadiço que "a maior parte do malte utilizado pelas grandes indústrias, algo em torno de 65% ou mais, é importado. Mas isso não entrou na conta do autor". Ora, ou o trombeta não sabe ler, ou é intelectualmente apoucado, ou é mal-intencionado, ou os três, pois foi exatamente com a soma da cevada produzida no Brasil com a importada que foram feitas as minhas contas.
2) Patranha, mentira para tolos, crédulos. Afirmei e reafirmo aqui que a taxa de conversão da cevada em álcool é de 0,216 L/kg, e de milho em álcool é de 0,388 L/kg. E o sofista responde com as taxas de rendimento "na composição do extrato originário", o que nada tem a ver com conversão em álcool. Os dados, em todo caso, podem ser encontrados por exemplo no estudo "Culturas energéticas e o etanol", de Tiago Mateus. O leitor interessado também pode encontrar os dados de importação e exportação em www.cnpt.embrapa.br ou www.quercus.pt e com isso repetir os meus cálculos. Cuidado, deputado federal Paulo Maluf (PP-SP), pois está sendo ultrapassado desavergonhadamente em seu recorde mundial.
3) Inverdade, eufemismo (Machado de Assis, "A Semana"). Diz o buzina que "as cervejarias brasileiras de primeira linha não usam conservante (...) porque é ilegal". Será que a legislação brasileira é diferente para cervejas de segunda linha? E quais são as cervejas de segunda linha que, de acordo com a legislação brasileira, podem legalmente intoxicar os brasileiros com conservantes?
4) Embuste, quando é calculada para enganar. Diz o passavante que conservantes não são usados por serem desnecessários. Então para que servem o antioxidante INS 315 e o estabilizante INS 405, como se lê em letras miúdas de quase todos os rótulos de cervejas da AmBev e das demais cervejarias nacionais? Será que a mudança de nomenclatura de "conservante" por seu sinônimo, "estabilizante", satisfaz o legislador brasileiro? Será que o sarabatana estaria chamando o brasileiro de analfabeto, incapaz de ler o rótulo, ou de idiota, pois incapaz de entender o que lê?
5) Patarata é mentira com basófia, ostentação. Diz o estafeta que o lúpulo que é usado no Brasil vem da Alemanha e dos EUA e, portanto, é tão bom quanto o usado naqueles países.
Mais uma vez ofende a inteligência do leitor da Folha e do brasileiro em geral. Importamos vinhos de excelente e de péssima qualidade da França, da Itália etc. Os de baixa qualidade são mais baratos. Importamos bons e péssimos filmes dos EUA.
A diversidade da qualidade do lúpulo alemão é, reconhecidamente, enorme. As cervejas americanas são quase tão "leves, refrescantes e digestivas" e homogeneamente banais quanto as brasileiras. Que o leitor experimente uma dessas vulgares cervejas americanas. (Aliás, se alguém precisa de digestivo, é melhor tomar sal de fruta Eno do que cerveja da AmBev. E o gosto não é muito diferente). Então por que as boas cervejas belgas, inglesas e alemãs que usam lúpulo de boa qualidade não precisam de antioxidantes e estabilizantes?
6) Intrujice, quando se abusa da credulidade de fraternos. E, agora, o maior dos sofismas, o abuso repugnante de um sentimento de brasilidade dentro da mesma técnica que a AmBev elabora suas indecorosas propagandas televisivas, que induzem o cidadão desavisado a consumir suas cervejas pela associação com objetos de desejos primitivos: carros de luxo, mulheres seminuas, fartos banquetes, ou seja, a peta da promessa de sucesso.
Os pífios argumentos do recadista apenas comprovam o baixo nível ético da empresa que o emprega.

A Operação Borracha e a Comissão da Verdade

Por Cássio Schubsky

Em 1971, no período mais sangrento da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), durante o Governo Médici, o escritor gaúcho Erico Veríssimo trouxe a público o romance “Incidente em Antares”. A obra, combinando ficção e realidade, transformou-se em um libelo contra a repressão política, denunciando a tortura e o assassinato de presos políticos e o acobertamento dos fatos pelos mandões da cidade imaginária de Antares, supostamente localizada perto de São Borja, no Rio Grande do Sul, nas proximidades do Uruguai e da Argentina. Mais do que denúncia contra as arbitrariedades da ditadura, o livro serviu de alerta sobre os riscos futuros de se tentar apagar o passado – como se isso fosse possível...

Fábrica de mentiras
O Estado Novo (1937-1945), que namoricava com o fascismo italiano e flertava com o nazismo alemão, já tivera seu detrator, o magistral escritor alagoano Graciliano Ramos. Em sua obra autobiográfica “Memórias do Cárcere”, Graciliano denunciou, com as tintas cáusticas de sua pena afiada, as arbitrariedades de Vargas, revelando as condições sub-humanas a que milhares de presos políticos eram submetidos pela ditadura getulista. Mais: o autor mostrava a ilegalidade das prisões, sem amparo legal algum, destituídas de processo judicial. O crime sem previsão legal era o de pensar, pensar livremente, divergir dos poderosos de ocasião. A pena ministrada pelas forças repressoras: cadeia.

Em um aforismo conhecido, Karl Marx escreveu que "A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. E assim foi com as ditaduras do Brasil no século passado. Nem a denúncia arrasadora de “Memórias do Cárcere” serviu para aliviar a contundência da barbárie perpetrada por órgãos de segurança civis, militares e paramilitares durante a ditadura implantada em 1º de abril de 1964. A tragédia se repetia como farsa, começando no dia da mentira. Após o Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968, a tortura, o estupro e o assassinato tornaram-se práticas generalizadas contra presos políticos, muitos deles, como ocorrera com Graciliano Ramos décadas antes, “condenados” sumariamente, sem o devido processo legal, pelo “grave” crime de opinião divergente, como o jornalista Vladimir Herzog ou o deputado Rubens Paiva, para resumir os exemplos.

A mentira tem pernas curtas, mas, lamentavelmente, tem vida longa. No caso de Herzog, como ocorreu tantas outras vezes no regime de triste memória, forjou-se a versão de suicídio (e não faltou nem um atestado de óbito para referendar a farsa). No caso de Rubens Paiva, como no de tantos outros presos políticos, a versão inventada foi a do “desaparecimento”.

É certo que a Lei 9.140, aprovada em 1995, reconhece a situação de morte dos “desaparecidos”. Mas a mentira sobrevive, pois se desconhecem os meios pelos quais os mortos foram executados. E muitos dos corpos dos presos sob a tutela do Estado permanecem “desaparecidos”.

Operação Borracha
Já dizia Ezra Pound, poeta, tradutor e teórico da comunicação, que “os artistas são as antenas da raça”. Quer dizer: eles têm uma sensibilidade aguçada, muitas vezes conseguindo enxergar adiante e, portanto, antes do comum mortal.

Erico Veríssimo, em seu “Incidente em Antares”, teve, pois, uma antevisão do que a história brasileira nos reservava. O personagem João Paz é morto vitimado por torturas na delegacia da cidade imaginária de Antares. Uma greve geral paralisa inclusive o serviço funerário. E, no meio da confusão, sete mortos insepultos ressuscitam, a história de Paz vem à tona, e os torturadores são denunciados em praça pública.

Finda a greve, enterrados os sete mortos, as denúncias de maus-tratos aos presos políticos também precisavam ser sepultadas, pois denegriam a imagem ilibada dos próceres da cidade, como o prefeito, o delegado e o coronel político da localidade. E a solução foi a fatídica “Operação Borracha”. Uma ação coordenada para escamotear os fatos ocorridos, as denúncias veiculadas. Enfim, uma iniciativa deliberada para forjar uma versão oficial – e mentirosa – do passado. E o passado foi apagado e o que restou dele foi jogado para debaixo do tapete. E ai de quem temesse mexer no vespeiro da História!

Comissão da Verdade
Quase quarenta anos depois da publicação de “Incidente em Antares” e vinte e cinco anos após o fim do regime militar, o Brasil está às voltas novamente com sua Operação Borracha, com a resistência de pessoas e segmentos sociais envolvidos com a ditadura, que não querem ver, de jeito nenhum, o passado ressuscitar, desmantelando-se as versões forjadas para tortura, estupro e assassinato de centenas de opositores do regime. A nova Operação Borracha perdura até em eufemismos, para chamar a repressão política no Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), recentemente divulgado, por outro nome qualquer.

Alegam, porém, familiares dos mortos e “desaparecidos” políticos, entre outros atores sociais, que possuem o direito legítimo à memória e à verdade – conhecer os fatos é um direito de todos, aliás. Daí a necessidade de implantação da Comissão da Verdade, prevista no PNDH, ainda pendente de aprovação pelo Congresso Nacional.

De fato, é preciso parar com essa história de que o brasileiro não tem memória, como se fôssemos um povo relapso, que por vontade própria ou algum tipo de deformação inata esquece o que se passa. Há forças poderosas que, ainda hoje, resistem em se defrontar com o passado real, com uma história recente repleta de atos criminosos de lesa-humanidade, que ferem tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo País. Afinal, o brasileiro só pode ter memória se o passado real for escarafunchado, sem peias.

Tema polêmico é o da revisão da Lei da Anistia, ou se esta lei é legítima por ter sido promulgada durante a ditadura, ou ainda se ela abrange os crimes de lesa-humanidade. A questão deve ser julgada em pouco tempo pelo Supremo Tribunal Federal, que foi provocado pelo Conselho Federal da OAB a manifestar-se a respeito.

Seja como for, a História insepulta do Brasil continua se recusando a morrer abraçada com a mentira. O direito à memória e à verdade eclode, mais cedo ou mais tarde, porque, como ensinam Chico Buarque de Holanda e Pablo Milanês, “a História é um carro alegre, cheio de um povo contente, que atropela indiferente todo aquele que a negue”.